Por Valerio Fabris
Somente incorporando-se aos hábitos nacionais a prática rotineira da governança compartilhada é que o país manterá firme o tripé do desenvolvimento sustentável, compreendendo a estabilidade democrática, o crescimento econômico e a redução das desigualdades. Este foi, em síntese, o consenso resultante dos seis dias da Semana Rio 2020, promovida pelos jornais O Globo e Extra, como parte do movimento “Reage, Rio!”, focado em apontar alternativas para que o Estado supere o longo ciclo de desestruturação social e sucessivas crises políticas
Brasileiros insatisfeitos com o funcionamento da democracia no país
Nos diversos painéis do encontro, transmitido por meio das plataformas de vídeo, prevaleceu o diagnóstico de que as decisões dos investimentos públicos têm sido inadequadamente tomadas nos ambientes fechados dos gabinetes oficiais da União, dos Estados e municípios. Isto é, sem que haja o desejável envolvimento das partes interessadas no processo de construção dos projetos. Portanto, há muito tempo vem se ignorando no Brasil o necessário envolvimento simultâneo da sociedade, da iniciativa privada, do Estado e das áreas acadêmico-científicas na construção de todas as etapas dos novos projetos, desde o nascedouro até sua implementação final. A essa participação coletiva na completa construção dos novos projetos dá-se a denominação de governança democraticamente compartilhada.
A propósito, o arquiteto e urbanista Vicente Loureiro, ex-diretor da Câmara Metropolitana do Rio de Janeiro, assim se referiu aos projetos concebidos por pequenos grupos de autoridades e empreiteiros: “Se não há governança compartilhada, não há futuro”. O resultado dos projetos concebidos por restritos grupos do poder são obras malfeitas, inacabadas e superfaturadas, como em larga escala ocorreu nos Jogos Pan-Americanos, na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas Rio 2016.
Os contratos haviam sido solenemente assinados e divulgados com estardalhaço na imprensa, mas, como se viu nos três grandiosos eventos, as entregas não se efetivaram conforme o anunciado, gerando-se na opinião pública o sentimento de frustração em relação aos governantes. Em pesquisa realizada pelo Barômetro das Américas e divulgada em junho do ano passado, concluiu-se que seis em cada dez brasileiros estão insatisfeitos com o funcionamento da democracia no Brasil. A pesquisa é feita pela Universidade de Vanderbilt em parceria com a Fundação Getúlio Vargas.
Novas gestões costumam descontinuar projetos de administrações anteriores
Quando um projeto se torna bem-sucedido em uma administração municipal, estadual ou federal, é costumeiro que seja descontinuado pelo sucessor pertencente
a outro grupo politico. Vários exemplos foram citados na Semana Rio 2020. Entre eles, o programa Favela-Bairro, em que as comunidades também passaram a ser contemplados com a infraestrutura básica de água, luz, rede esgoto e serviços públicos existente nos bairros próximos. A esse conjunto de benfeitorias, acrescentava-se no Favela-Bairro a disponibilização de programas e equipamentos socioculturais.
Criado pelo prefeito Luiz Paulo Conde (gestão 1997/2001), o Favela-Bairro alcançou repercussão internacional. Porém, após o encerramento de seu mandato, o sucessor não deu prosseguimento às intervenções de infraestrutura e serviços. Conde faleceu em 2015, aos 80 anos de idade. Esta e outras ocorrências semelhantes foram citadas ao longo da semana promovida pelo movimento Reage, Rio!
O engenheiro Luiz Edmundo da Costa Leite lembrou, durante os debates do seminário virtual, que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) abriu em 2012 um crédito de US$ 500 milhões, destinado à implantação de redes de esgoto no Rio de Janeiro. O projeto ficou parado na gaveta das autoridades fluminenses. “E isso está esquecido; ninguém mais fala do assunto”, disse o engenheiro.
Há bem-sucedidas iniciativas, mas de breve duração; e há boas ideias que são ignoradas
O engenheiro citou, ainda, a súbita interrupção de um programa de estímulo ao transporte de lixo até os aterros licenciados, que se localizam na região metropolitana. Costa Leite disse que esse programa havia sido criado e desenvolvido pela titular da Secretaria de Estado do Ambiente, Marilene Ramos. As prefeituras passaram a receber apoio financeiro para que se transportassem o lixo e os entulhos de construção até os aterros. “Isso funcionou muito bem durante três anos. Melhorou bastante a situação. Mas, também acabou. Acabou, e acabou, e, outra vez, ninguém fala mais nisso”, lamentou.
Ele narrou a ocorrência de um terceiro episódio do gênero, em que o professor Paulo Canedo (pesquisador do Laboratório de Hidrologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro) propôs que as margens dos rios da Baixada Fluminense fossem transformadas em canal/avenida, criando-se um impeditivo à construção de moradias nessas faixas de terra das margens dos cursos d’água. Os gestores também ignoraram o projeto. Foi então que o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, apressou-se em convocar Paulo Canedo (um dos mais respeitados nomes brasileiros no campo da drenagem urbana de águas pluviais) para executar o projeto no município capixaba de Vila Velha. O engenheiro Luiz Edmundo Leite elogiou Hartung, considerando-o exceção à regra geral de políticos personalistas e centralizadores.
Os que se recusam a compartilhar a governança agem como eleitoreiros ou milicianos
Em decorrência do personalismo estrutural prevalecente na cena política brasileira, o conceito da governança compartilhada é escassamente difundido. O desconhecimento de um modelo de gestão usual nas mais sólidas democracias do mundo deixa o campo aberto ao populismo, como em tom de blague ilustrou, em ‘live’ do Insper, o professor Sandro Cabral, coordenador do curso de Políticas Públicas daquela instituição de ensino. Quando o político monopoliza a realização de uma obra pública, amplia o seu espectro eleitoreiro naquela comunidade. Se esse investimento é liderado por um cidadão que tem forte influência junto às esferas oficiais, como completou Cabral em sua humorada analogia, ele acaba impondo o poder pessoal naquele território, em ação semelhante à dos milicianos.
A alegórica comparação feita pelo professor do Insper serve para pedagogicamente indicar que a governança transparentemente compartilhada entre lideranças comunitárias, representantes da iniciativa privada, membros da comunidade acadêmico-científica e autoridades do Estado, anula as possibilidades do oportunismo eleitoreiro ou da ação de ‘milicianos’ nos projetos de interesse público.
A reboque do personalismo, a desintegração nos sitemas de mobilidade, saúde e educação
Também no entendimento dos participantes da Semana Rio 2020, as governanças transparentemente compartilhadas são uma condição imprescindível aos objetivos nacionais de estabilidade democrática, crescimento econômico e redução da desigualdade. No rastro do vício personalista e centralizador, outras anomalias acabam surgindo, como efeitos colaterais. Entre elas, por exemplo, a desintegração entre as polícias civil e militar, ou a desarticulada gestão dentro do
sistema público de hospitais.
O cientista político Miguel Lago (diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde – IEPS) comentou, em sua exposição no evento dos jornais O Globo e Extra, que o Rio “tem uma quantidade gigante de hospitais federais, estaduais e municipais” Mas, faz a seguinte ressalva: “É uma rede totalmente desarticulada, não funcionando como uma rede integrada de saúde .A gente herdou tudo aquilo que existia de equipamento público da época em que éramos a capital do país”.
O resultado - prossegue Miguel Lago - é que não se tem “uma rede de atenção digna para a população, uma vez que existe, realmente, um problema muito grande de gestão e de articulação”. As declarações do cientista político são convergentes com as reportagens de televisão e jornal sobre as seguidas ondas de colapso nos hospitais públicos da cidade.
A precariedade e a subutilização dos prédios escolares é sintoma de mau-desenvolvimento
No painel da Semana Rio 2020 sobre educação e juventude, acentuou-se que, ao contrário do que ocorre no Brasil, as atividades escolares do contraturno são intensas nos Estados Unidos, aproveitando-se ao máximo as instalações e o quadro de funcionários já existentes nas unidades públicas de ensino.
As escolas (todas em tempo integral) acabam sendo o principal polo da vida comunitária das pequenas e médias cidades, com a apresentação de teatro e música, jogos de baseball e futebol americano. O expositor Sérgio Guimarães, economista e diretor do IMDS, falou sobre a importância de se realizar atividades do contraturno nas escolas brasileiras e, particularmente, nas do Rio. “Cada cidade americana desenvolve, durante as férias, programas de trabalho de verão (‘summer job’), em que os alunos do sexto ao oitavo ano começam a ter contato com o ambiente de trabalho”.
Relatou que nesses ‘summer jobs’ transmitem-se aos jovens os valores e a ética do trabalho, a começar pela pontualidade. Desenvolvem-se capacidades socioemocionais de jornadas em equipe, que produzem efeito sobre a capacidade inovadora. O influenciador digital Murilo Duarte, 25 anos, que criou e mantém em atividade o canal “Favelado Investidor” (hoje com 100 mil inscritos, e mais 204 mil seguidores no Instagram), endossou as declarações de Guimarães.
O seu canal tem como público-alvo as pessoas “da quebrada”, as de baixa renda e os iniciantes no universo do mercado financeiro. Disse ele: “Precisamos melhorar a estrutura física, o ambiente da escola. Há algumas que não têm telhado, não têm janela. Na minha escola, os alunos usavam os livros para tampar o buraco em que estaria uma janela, assim protegendo-se da chuva”.
O Brasil precisa se incluir em si mesmo, seguindo exemplos como o de Sobral
As crianças e jovens dos territórios vulneráveis lidam com múltiplas adversidades no seu dia a dia, a começar pela vida doméstica, como observou Beatriz Pantaleão, diretora executiva da Fundação Gol de Letra. “É preciso que se faça um trabalho com as famílias. Esses meninos às vezes estão dentro de contextos familiares que são complicados. É impressionante a diferença de resultado quando as famílias participam, em relação àquelas famílias que são ausentes”.
O rol das precariedades é muito extenso, na opinião de Sérgio Guimarães. Para se solucionar as carências e disfunções que se espalham nas áreas de menor poder aquisitivo do Rio de Janeiro, como descreveu ele, é preciso que se recorram às bem-sucedidas experiências alcançadas em outras cidades e regiões do país. Um paradigmático caso de sucesso é o do ensino público de Sobral, a cidade cearense que se tornou modelo nacional de gestão escolar, precisamente porque lá se aplicou a governança compartilhada, com acentuado envolvimento das famílias e lideranças comunitárias.
O sinal mais alarmante do profundo desarranjo no sistema educacional brasileiro, como analisou o diretor do IMDS, é que o país tem 11 milhões de jovens, entre 15 e 29 anos de idade, que nem estudam e nem trabalham. Na cidade do Rio há 300 mil rapazes e moças que se situam nessa dolorosa situação de “nem nem”, carentes de habilidades cognitivas e socioemocionais. Como ilustrou o economista, é um contingente gigantesco, capaz de lotar seis estádios do Maracanã.
A falta de habilidades socioecomocionais é um dificultador nas entrevistas de emprego
O fator que mais dificulta a contratação dos jovens pelas empresas são, nas entrevistas, as avaliações comportamentais relativas a atributos como estes, que se situam no campo das competências socioemocionais, conforme aponta Sérgio Guimarães: “capacidade do trabalho cooperativo, amistosidade, a não agressividade, o respeito ao outro, a pontualidade”. O bem-estar nas relações familiares e a prática regular de atividades esportivas, em um ambiente minimamente dotado de ordenada infraestrutura básica, aí incluindo a escola e a moradia, favorecem o desenvolvimento das habilidades socioemocionais, observou ele.
Ao dar ênfase à importância das competências socioemocionais (criatividade, comunicação, autonomia, paciência, sociabilidade, ética), Guimarães ressalva que não está desconsiderando as competências cognitivas ( interpretar, memorizar, calcular, relacionar, refletir, pensar abstratamente, planejar, generalizar e sistematizar aprendizados), relativas, por exemplo, à matemática, à escrita ou ao conhecimento computacional básico.
Faz, no entanto, esta ponderação: “É claro que as habilidades cognitivas são o núcleo de tudo. Para que tenhamos uma ideia sobre a importância disso, basta olharmos para a Coreia do Sul, a Finlândia e Cingapura. Lá, nesses países, as escolas funcionam em tempo integral, com um contraturno que não é só de educação física. Inclui ciência, matemática e outras matérias. Se não fizermos assim, não teremos futuro”.
A profusão de fatores adversos aos de baixa renda, como a qualidade do transporte coletivo
Se há um setor em que se pode medir o grau cultural da governança compartilhada nos ambientes urbanos de vários países, este é o do transporte coletivo. Há, nas cidades brasileiras em geral, excessivo poder aos operadores das linhas de ônibus, contrastando com a baixa qualidade do serviço que é entregue, como apontou, na Semana Rio 2020, a diretora do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), Clarice Cunha Linke.
“Temos contratos com vigência até 2030. Ainda há, pela frente, dez anos de contrato de um serviço que não está funcionando, que tem uma série de problemas,
que está completamente desequilibrado”. Ela descreve que as empresas operam “as vias, os pontos de ônibus, a bilhetagem”, sem que haja transparência sobre o tempo (das viagens), a velocidade, o custo da tarifa.
A mobilidade é uma variável relevante na qualidade de vida das pessoas, enfatizou Clarice. “O desafio é o de se montar um sistema de governança”, conforme disse a diretora do ITDP, que dê “ao governo e à sociedade civil instrumentos que permitam o controle (das variáveis), assegurando-se a qualidade dos serviços que são entregues”.